Todo dia 2 de fevereiro, em Salvador, uma multidão vestida predominantemente de branco e azul comparece ao bairro do Rio Vermelho para reverenciar Iemanjá, a Rainha do Mar e Mãe de Todas as Águas. Considerada umas das três grandes manifestações populares da cidade, dividindo o pódio com o Carnaval e a Lavagem do Bonfim, a festa é a maior dedicada a um orixá na Bahia e passou por diversas mudanças até os dias atuais. Contudo, o elo de espiritualidade e cultura mantém a tradição centenária viva, resguardando a ancestralidade de matriz africana.
A celebração que toma ruas e praias do Rio Vermelho ainda antes do raiar do sol teve origem a partir do protagonismo de pescadores locais ainda nas primeiras décadas do século 20, embora algumas pesquisas esclareceram que o culto a Iemanjá existisse antes disso.
“A história dessa festa, como qualquer elemento da nossa cultura, precisa de um marco fundador. Em 1923, há o relato do jangadeiro Zequinha para um dos grandes jornais daqui da Bahia sobre uma oferenda de pescadores para a divindade das águas, na expectativa de que ela pudesse resolver o problema de escassez de peixes do mar”, explica o historiador Murilo Mello.
A partir daquele momento, o ato de depositar oferendas para a orixá passou a ser um rito anual e viria a fazer parte da Festa de Nossa Senhora de Santana, estritamente ligada ao catolicismo, que ocorria na região desde 1870. A programação contava com anúncios sobre o Carnaval e até concurso de miss, numa época em que o Rio Vermelho era uma área afastada do centro da cidade.
“A Festa de Santana era muito concorrida pelos veranistas, inclusive, tinha carro alegórico que ia até a Barra, queima de fogos, venda de guloseimas para angariar fundos para a celebração. Dentro de toda aquela liturgia, de todos aqueles dias de festejos, os pescadores pediam permissão da Igreja Católica para depositar presente a Iemanjá”, complementa Mello.
Tal evento religioso não acontecia no dia 2 de fevereiro, pois possuía uma data móvel. Uma das explicações para a consolidação do calendário atual é a culminância com os dias de duas santas: o de Nossa Senhora das Candeias e o de Nossa Senhora dos Navegantes.
Ainda no começo do século 20, o sincretismo que existia no festejo sofreu uma ruptura decorrente de conflitos com lideranças católicas, que chegaram a contestar a devoção a uma orixá com aspecto de sereia. Os pescadores resolveram seguir com a celebração a Iemanjá de forma separada, sobressaindo-se à Festa de Santana, que passa a ser deslocada para o meio do ano.
Vale ressaltar que a entrega de oferendas, porém, nem sempre teve o Rio Vermelho como único palco. Ainda hoje pescadores e devotos prestam homenagens em locais como Itapuã, inclusive em corpos de água doce, como lagos e rios.
Evidência – O 2 de fevereiro ganha força por volta da década de 60, quando renomados expoentes locais da música e literatura, como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Jorge Amado, fazem alusão à festa em suas respectivas artes. “A sociedade não conhecia o 2 de fevereiro. Então, a partir do momento em que os grandes artistas começam a relatar essa oferenda, ganha-se esse vulto que a gente conhece hoje como a maior festa com viés afro da Bahia”, explica Mello.
Já o culto a Iemanjá em Salvador é mais antigo do que a festa em si. Há registros de reverência à Mãe d’Água, por exemplo, na Cidade Baixa, próximo ao Monte Serrat, no final do século 19.
Ritos – Os preparativos para a Festa de Iemanjá em Salvador começam na véspera, na noite do dia 1º fevereiro, na Casa do Peso (ou Casa de Iemanjá), no Rio Vermelho. Na alvorada, por volta das 4h da manhã do dia seguinte, a celebração começa oficialmente, com a explosão de fogos de artifício. A fila para deixar oferendas começa a ser formada cedo e dura o dia todo.
Ao lado da Casa do Peso é montado um barracão onde fica a oferenda principal preparada por pescadores e por um terreiro da cidade. O caramanchão abriga ainda 200 balaios cheios de presentes, a exemplo de flores, sabonetes, perfumes, entre outros itens, depositados pelos devotos. O ponto alto da festa é a saída dos barcos para a entrega das oferendas a Iemanjá, por volta das 16h, durante cortejo em alto mar.
Responsável por conduzir a embarcação que vai levar o presente principal no próximo dia 2 de fevereiro, Roberto Pantaleão, 67 anos, vive do mar há cinco décadas e destaca o quanto a celebração saiu de uma simples homenagem ao status de repercussão internacional. Embora já esteja acostumado, há um certo desafio em conseguir recepcionar todos os presentes que chegam para Iemanjá. “A gente mobiliza aqui na Colônia de Pescadores, só para poder fazer essa parte do transporte das oferendas, entre 40 a 50 pescadores no dia da festa.”
Pantaleão fala com orgulho do fato de a festa ter os pescadores no epicentro de sua realização. No 2 de fevereiro, diz, uma força sobrenatural inunda o Rio Vermelho: “Tem gente de outros países e continentes, de japonês a europeus, que chegam aqui no barracão onde tá o presente principal e ‘dá santo’. Já vi dezenas de casos assim. A energia que circula é inexplicável”, relata, aos risos.
Para o pescador, a Festa de Iemanjá, que fará 101 anos, é uma das poucas manifestações religiosas que não perderam glamour e intensidade com o passar do tempo: “Acredito que por conta do fascínio que o mar exerce em todo mundo”. Em outras palavras, Pantaleão entende que Iemanjá pode ser sentida no ritmo da maré, na brisa e balanço suave das ondas.
Representação – A chegada de Iemanjá ao Brasil remonta o comércio transatlântico de escravizados, quando milhões de africanos foram retirados à força de suas terras natais para as Américas, a partir do século 16. Muitos deles eram da tribo Iorubá, que tinha uma rica tradição espiritual que incluía a adoração a vários orixás.
Figurada no Brasil como uma mulher de cabelos esvoaçantes, cauda de sereia e associada às cores azul e branco que simbolizam ligação com a pureza, clareza e imensidão do oceano, Iemanjá também é associada à maternidade, além de protetora de mulheres e crianças. Ela tornou-se parte integrante das religiões afrobrasileiras, tendo culto espalhado no país ao longo do tempo, sobretudo em regiões costeiras.
“No Brasil, Iemanjá continua sendo um poderoso símbolo de resistência contra a opressão e da força inabalável das tradições culturais africanas. Seus devotos a veem como uma fonte de conforto e proteção, principalmente para mulheres e crianças. Ela está associada a todo poder supremo do mar, e é frequentemente invocada por aqueles que vivem do oceano”, descreve a escritora Camila Nogueira, no livro Iemanjá: Rainha das Águas Salgadas.
Makota do Inzo Dandalunda Espelho d’Água, na Federação, Letícia Silva, 27 anos, ressalta a influência da orixá no seu dia a dia. “Minha maior graça alcançada por Iemanjá é ter uma cabeça equilibrada, forte, que me faça pensar nas melhores decisões que possam ser tomadas em determinados momentos”, frisou.
“Iemanjá é minha mãe três vezes. Além dela ser a dona dos Orís e da cabeça, é mãe do meu santo e de uma das entidades que sou responsável no terreiro. Falar dela é falar de amor, cuidado e maternidade. Sempre cultuei Iemanjá e tive afinidade com ela mesmo antes de ser do candomblé. Todo dia 2 de fevereiro presto saudações e meu terreiro faz uma festa linda com entrega de presentes”, completou.