Criadas para aumentar a diversidade racial no Ministério Público, as cotas para negros nos concursos públicos para promotor de Justiça e procurador da República têm esbarrado no número reduzido de candidatos aprovados.
Ao todo, 45% das vagas reservadas a esse grupo não foram preenchidas nas seleções mais recentes realizadas em cada um dos estados e no MPF (Ministério Público Federal).
Embora, em regra, haja candidatos negros em número suficiente, uma parcela considerável não passa para as fases mais avançadas dos concursos.
Ao todo, 22 unidades da federação tiveram concursos para membros dos ministérios públicos estaduais após a resolução do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) n° 170/2017, que instituiu a reserva de ao menos 20% dos postos para negros.
Em oito estados, ao menos parte das vagas de cotas para negros na seleção mais recente não foi preenchida. São eles Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
No Ministério Público Federal, o problema se repete. Na concorrência aberta no ano passado, nenhum candidato negro foi aprovado dentro da cota.
De forma geral, o cenário se assemelha ao encontrado no Judiciário. Como mostrou a Folha de S.Paulo, desde a instituição de cotas em concursos para juiz, em 2015, só 2 em cada 5 vagas reservadas a negros foram preenchidas nos Tribunais de Justiça dos estados —e nenhuma nos Tribunais Regionais Federais.
Segundo as estimativas mais recentes do CNJ e do CNMP, só 15% dos magistrados e 12% dos membros do Ministério Público do país se declaram pretos e pardos.
Para minimizar o problema entre os juízes, o CNJ aprovou em agosto resolução que veda o estabelecimento de qualquer cláusula de barreira para candidatos cotistas na prova objetiva da carreira, bastando a nota mínima 6 para que sejam admitidos nas fases subsequentes.
O CNMP também avalia eliminar nota de corte ou qualquer cláusula de barreira a candidatos cotistas na prova objetiva. A proposta de resolução foi finalizada em fevereiro de 2023 e tramita desde então.
Se ela for aprovada, bastaria a esses candidatos alcançar a nota mínima para aprovação para passar à fase seguinte.
Eliminar cláusulas de barreira deve ajudar a aumentar o número de candidatos negros aprovados ao final do concurso, uma vez que a primeira fase, em geral, exige mais “competências de lembrar” do que de análise, afirma Tatiana Dias Silva, autora de diversas pesquisas sobre os concursos para o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Tendem a ir melhor em questões de memorização candidatos com mais recursos para cursinhos preparatórios. Mas o problema vai além da prova objetiva.
O Ministério Público de São Paulo, por exemplo, só exige a nota mínima dos cotistas, mas mesmo assim não tem preenchido as vagas da política afirmativa —na seleção em andamento, por exemplo, nenhum dos 26 aprovados na fase discursiva é cotista.
Ao analisar os três concursos anteriores no órgão, a promotora de Justiça Mirella de Carvalho Bauzys Monteiro, que também é integrante auxiliar do CNMP, observou que o principal gargalo para o preenchimento das vagas de cotas havia sido a prova escrita.
Nessa etapa, segundo ela, foi decisiva a postura da banca examinadora, tanto no grau de dificuldade da prova, quanto no nível de rigidez da correção, ambos com considerável subjetividade.
Ela sugere entre as alternativas a eliminação de uma nota mínima fixa para a prova discursiva. Outra possibilidade seria seguir o exemplo do Ministério Público de Minas Gerais e prever uma revisão da nota mínima na prova discursiva diante do seu grau de dificuldade.
DIFICULDADES
Além das regras dos concursos são importantes, estudos sugerem a possibilidade de outros obstáculos.
Ao analisar concurso para a magistratura do trabalho, pesquisa do Ipea elencou uma série de barreiras que os candidatos às cotas enfrentam, e que muito provavelmente se repetem entre aqueles que postulam o cargo de promotor ou procurador.
O estudo mostrou que o custo médio de preparação entre os aprovados para atuar na Justiça trabalhista era de R$ 36 mil.
O valor englobava cursos preparatórios, materiais de estudo, simulados, computadores, profissionais de apoio à preparação e de saúde, suplementos e medicamentos, vestimentas e passagens, hospedagens, alimentação e deslocamento para as provas.
Atualmente diretora de avaliação, monitoramento e gestão da informação do Ministério da Igualdade Racial, Tatiana acrescenta ainda outras barreiras a candidatos com menos recursos financeiros, como a dificuldade de se afastar da família e do trabalho para prestar as provas fora da sua cidade.
Uma hipótese, diz ela, é que potenciais ocupantes das cotas não estejam nem sequer se inscrevendo nos concursos devido a essas barreiras, somadas às financeiras.
Para dirimir os efeitos sobre esse público, segundo a diretora, medidas importantes seriam, por exemplo, a convocação com antecedência para as provas das fases mais adiantadas, de modo que os candidatos consigam se planejar para prestar o exame.
Ela avalia que seria preciso fazer uma análise de cada concurso para avaliar se estariam sendo exigidos dos candidatos conhecimentos que poderiam ser transmitidos depois em cursos de formação da carreira.
Assim como acontece na magistratura, há sobra de vagas mesmo na ampla concorrência no Ministério Público —de 15% considerando a seleção mais recente realizada em cada estado e no MPF.
No caso de juízes, uma ideia já ventilada por integrantes do CNJ é apoiar o preparo dos candidatos negros para a aprovação no concurso.
Um modelo que costuma ser citado é o do Ministério das Relações Exteriores. Pleiteantes às cotas recebem uma bolsa de R$ 30 mil para chegar em boas condições à prova para o Instituto Rio Branco.
PROMOTORES NEGROS REIVINDICAM MEDIDAS NO CONCURSO EM PERNAMBUCO
Para evitar que sobrassem vagas de cotistas, os integrantes do grupo de trabalho contra o racismo do Ministério Público de Pernambuco sugeriram uma série de medidas com base nas pesquisas do Ipea, afirma a promotora de Justiça Irene Cardoso Sousa.
“Nos incomodavam bastante aquelas fotos de aprovados nos concursos só com pessoas brancas”, afirma.
Com base nos resultados, eles pleitearam uma cota para negros de 25%, maior que a mínima necessária –atualmente, o índice só fica atrás dos editais do Ministério Público da Bahia, que reservam 30% das vagas a pretos e pardos.
O grupo de trabalho contra o racismo de Pernambuco também demandou, e conseguiu, a aplicação da cota desde o início da segunda fase e que candidatos que tivessem sua autodeclaração negada pela comissão de heteroidentificação fossem eliminados, em vez de passar para a ampla concorrência.
O grupo pediu ainda a adoção de medidas para reduzir, sempre que possível, o custo para os candidatos —por exemplo, com a possibilidade de comprovação de documentos online, ou o agendamento da data da avaliação da autodeclaração próxima de alguma prova do concurso, para evitar gastos em dobro com passagens e hospedagens. O concurso teve 4 vagas reservadas para negros e 17 candidatos aprovados para ocupá-las.