Ao completar 270 anos em 2024, a Lavagem do Bonfim, realizada no mês de janeiro, vai além de uma festa – é um elo vibrante entre espiritualidade e tradição que atrai devotos, turistas e amantes da cultura para uma jornada única e festiva em Salvador. O cortejo, iniciado na Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no Comércio, em direção à Basílica Santuário Senhor do Bonfim, na Colina Sagrada, ganha vida com a presença marcante das baianas, carregando potes de água perfumada, e os fiéis, todos vestidos de branco, formando um verdadeiro tapete na Cidade Baixa.
Com uma caminhada de cerca de oito quilômetros, a celebração se torna um espetáculo de cores, ritmos e tradições, enriquecido por grupos de capoeira, blocos afro e baianas com trajes típicos. Um cenário que evidencia a comunhão entre o sagrado, através do sincretismo entre as religiões católica e de matriz africana, e o profano, com as barracas de comes e bebes e a música e dança no entorno do cortejo.
O aroma de alfazema se mistura aos atabaques e cânticos, criando uma atmosfera que transcende o ritual de lavar as escadarias da Igreja do Bonfim, em agradecimento pelas graças alcançadas e renovação de pedidos para o ano que se inicia.
As origens da festa remontam ao século XVIII, com a chegada da imagem de Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim à primeira capital do Brasil, em 1745, trazida de Lisboa (POR) pelo capitão de mar-e-guerra português Theodósio de Lima. A primeira procissão ocorreu em 1754 e teve a presença de grande parte da população da cidade. Com o tempo, adeptos das religiões de matriz africana também passaram a participar da procissão ao lado dos católicos, para saudar Oxalá.
Páscoa – O padre Edson Menezes, reitor da Basílica do Senhor do Bonfim, destaca o papel da Lavagem do Bonfim no calendário de festas populares, ressaltando a contribuição para o diálogo interreligioso. Ele conta uma curiosidade: a festa era celebrada em outra data.
“A Festa do Bonfim, inicialmente, acontecia no tempo da Páscoa, porque a imagem chegou aqui em Salvador em um domingo de Páscoa, no dia 18 de abril de 1745. Depois, como aqui era uma região de veraneio, a festa foi transferida para esse período que hoje acontece, de modo que os veranistas pudessem participar”, explica.
Antigamente, a festa do Senhor do Bonfim ocorria em seguida às de outros dois santos: Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo, ocupando assim um mês inteiro. No entanto, completa o padre Edson, a ordem foi modificada: primeiro acontece a festa de São Gonçalo (6 de outubro); em seguida a de Nossa Senhora da Guia (10 de novembro); e, em janeiro, a do Senhor do Bonfim.
A festa do Senhor do Bonfim, para ele, chama atenção para a convivência pacífica entre diferentes crenças. Ele destaca a importância da Lavagem como um fenômeno de pessoas que pensam diferente, mas caminham juntas.
“Às vezes, nós nos tornamos uma ilha ou nos fechamos dentro de muros, e é necessário que esses muros sejam derrubados e nós possamos entender que é preciso conviver com o outro, respeitosamente, cada um professando a sua fé. Então, o dia da Lavagem do Bonfim acontece esse fenômeno de pessoas que seguem o mesmo rumo, professando uma fé diferente, de nacionalidades diferentes e que fizeram opções de vida diferentes”, ressalta.
História – O historiador Murilo Melo pontua a significativa importância histórica da Lavagem e explica o motivo de ser uma data móvel. “Esse cortejo ocorre sempre na quinta-feira, antes do segundo domingo do mês, que é a Festa do Senhor do Bonfim, e após o Dia de Reis, que é muito importante na tradição católica. Em alguns países católicos, inclusive, esse dia tem mais importância do que o Natal. Então o cálculo é feito dessa forma, por isso tem variações de um ano para o outro”, elucida.
Segundo o historiador, a Lavagem do Bonfim “remontou” o século XVIII. “É uma das celebrações religiosas mais antigas do Brasil, e, sem sombra de dúvidas, a mais significativa de Salvador e da Bahia. É a que tem a maior força e apelo popular, e ela conseguiu, ao longo do tempo, quebrar a barreira da regionalidade, e hoje é uma festa nacional”, evidencia.
Tanto que, lembra Melo, símbolos da festa foram propagados a ponto de se tornarem representações da Bahia no Brasil e no mundo, sendo adotados até mesmo por pessoas que vivem fora do estado. Um desses símbolos é a fitinha do Bonfim, com pessoas de diversos países usando o adereço – ou transformando o gradil da Basílica em uma verdadeira cortina colorida de fé e devoção.
“A Lavagem, ao longo do tempo, vai passar por várias transformações, aquisição de novos símbolos, subtração de tantos outros, um organismo vivo. E ela vai se moldando ao seu tempo, se moldando à sociedade que está compondo naquele momento”, completa o historiador.
Quem tem fé, vai a pé – Peça carimbada da Lavagem do Bonfim, Eliana Maria Nunes de Souza, de 74 anos, realça a mudança de sentido da Lavagem com a contribuição do Padre Edson, transformando-a em uma oportunidade não apenas de lavar escadarias, mas de receber bênçãos. Eliana é coordenadora do projeto Bom Samaritano, uma obra social da Basílica Santuário do Senhor do Bonfim, criado em março de 2008, com o proposito inicial de retirar da condição de mendicância muitos pedintes que viviam instalados nas escadarias da igreja.
“Eu participo da Lavagem do Bonfim desde criança, porque sou moradora aqui nas imediações, mas eu devo ter 12 anos que me aposentei e resolvi servir nesse lugar, na Basílica do Bonfim. Eu sempre gostei do evento, já tive até bloco que reunia um grupo de amigos, tínhamos uma carroça e vínhamos”, lembra Eliana.
Ela nota que, nos últimos anos, a Lavagem ganhou um elemento a mais: a bênção aos fiéis. “Com a vinda do padre Edson, a Lavagem mudou bastante, porque fez com que as pessoas viessem para aqui não só para a lavagem das escadarias, mas principalmente para receber uma benção nesse dia. No ano passado, esse largo ficou lotado de gente, e todos à espera do padre. Eu acho que a Lavagem aumenta um pouco a devoção ao Senhor do Bonfim, considero muito linda a novena, que é uma obra musical muito bonita”, completa a idosa.